As Mulheres na Ciência em Portugal

A nível mundial, as mulheres e raparigas continuam a ser excluídas da participação plena na ciência. Este facto não só priva o mundo do enorme potencial científico de metade da sua população, como também impede que exista uma verdadeira igualdade de género.

O Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência é essencial, porque as estatísticas não mentem: as mulheres continuam a estar sub-representadas nestas áreas de conhecimento e a ter menos oportunidades do que os homens.

Segundo os dados das Nações Unidas, a nível mundial, em média, as mulheres recebem normalmente bolsas de investigação de valor inferior ao dos que os seus colegas masculinos e, embora representem 33,3% de todos os investigadores, apenas 12% dos membros das academias científicas nacionais são mulheres. Adicionalmente, em campos como a inteligência artificial, apenas um em cada cinco profissionais (22%) é mulher.

Apesar da falta de competências na maioria dos campos tecnológicos que conduziram à Quarta Revolução Industrial, as mulheres ainda representam apenas 28% dos licenciados em engenharia e 40% dos licenciados em ciências informáticas, sendo que as investigadoras académicas tendem a ter carreiras mais curtas, com salários mais baixos e o seu trabalho está subrepresentado em revistas de alto nível.

Em Portugal, a situação avizinha-se mais positiva e, em geral, existe uma maior paridade de géneros nas áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática, segundo o Eurostat.

Eurostat

No entanto, os números não contam histórias nem tomam em consideração se existem partes destas áreas com pouco equilíbrio entre mulheres e homens, por isso a UNRIC convidou a analista de mercado do INFARMED, Inês Henriques, jovem mestre do Curso de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Lisboa, para nos dar a sua perspetiva sobre este tópico.

UNRIC: Fala-nos um pouco do teu percurso académico e profissional e o que é que te apaixona na área em que te especializaste?

IH: Quando estava no secundário, não sabia bem que curso escolher, mas sempre soube que queria algo relacionado com a saúde. Encorajada pelos meus professores, segui para o mestrado integrado em Ciências Farmacêuticas, um curso diverso que tem uma saída ampla para diversas áreas, desde a possibilidade de atuar como farmacêutico comunitário e desenvolver um papel fulcral entre os doentes, como a possibilidade de seguir um caminho na investigação em áreas como Farmacologia, Biologia e Química. Mas, na realidade, existem imensas outras valências que um recém-licenciado em Ciências Farmacêuticas tem e sobre as quais dava por si só uma entrevista bastante complexa, mas fascinante.

No meu caso, além de saúde pública sempre fui uma apaixonada por matemática e sabia que o que quer que fizesse de futuro teria de ser uma mistura destas duas áreas. Apesar de para muitos a pandemia ter tido fortes impactos negativos, no meu caso acabou por ser uma oportunidade. Consegui obter uma carreira que me satisfaz como analista de mercado, que além de ter a componente em saúde pública, tem também como elemento principal a análise de dados farmacêuticos, capaz de satisfazer a minha sede por números.

UNRIC: Tens algumas referências de cientistas mulheres que te inspiraram no teu percurso?

IH: Absolutamente. Desde que me lembro sou fascinada pela Mary Curie e, em criança, recordo-me de que sonhava em ser cientista e achava que, tal como ela, iria sofrer uma trágica morte às mãos de um descuido de alguma descoberta científica. Nos tempos da faculdade essa referência deslocou-se, lentamente, para a Rosalind Franklin, devido ao seu contributo nos estudos da estrutura do ADN (trabalho que ficou popularizado por Watson e Crick, deixando-a durante alguns anos na sombra desta descoberta). No entanto, atualmente as minhas referências são pessoas mais próximas de mim, como a minha supervisora e outras investigadoras que conheci no meu âmbito profissional, em conferências e summer schools.

Foto de Inês Henriques

UNRIC: Em relação à paridade de género: sentes que na tua área existe um equilíbrio de género? Se não, a que se deve esse desequilíbrio?

IH: A minha área é fortemente dominada por mulheres, mas ainda existem diversos estereótipos acerca do meu e de outros cursos, como biologia, enfermagem e de tantos outros cuja percentagem de mulheres é superior à dos homens. Tive a infelicidade de conhecer pessoas em áreas das ciências, engenharias, tecnologia e matemática, que colocavam os seus próprios cursos hierarquicamente superiores a outros. Curiosamente, os cursos considerados como superiores e mais desafiantes, eram sempre aqueles com maior disparidade, nomeadamente engenharias, matemáticas, etc…

UNRIC: Relativamente às várias áreas das ciências, engenharias, tecnologia e matemática, quais são as que achas que existe menos paridade e mais paridade? E porque é que algumas são tão dominadas por homens?

IH: De facto, eu considero a matemática, engenharia, informática e física áreas em que existe menos paridade e que são dominadas pelos homens. Na minha opinião, eu acho que isto se deva ao facto de culturalmente ainda termos a perceção de que áreas mais analíticas e mais científicas serem inerentemente “masculinas”. Esta perceção é bastante comum, mesmo em pessoas que ativamente rejeitam estes estereótipos. Este preconceito não afeta apenas a forma como interagimos uns com os outros em sociedade, mas influencia também a probabilidade de raparigas e jovens adolescentes cultivarem o seu próprio interesse em matemática e ciências.  Simultaneamente, considero as áreas com mais paridade as áreas das ciências da vida, mas como referi por vezes existe uma tendência de colocar estas áreas como menos desafiantes que outras dentro das STEM*.

UNRIC: Relativamente à investigação académica, consideras que também nas universidades existe um desequilíbrio? Da perspetiva de bolsas de estudo, por exemplo.

IH: Não estou familiarizada com este universo, mas a ideia que tenho dos testemunhos que ouvi é que depende fortemente da área, já que diferentes mulheres descrevem experiências diferentes.

No meu contexto, o das ciências da vida, parece-me que a investigação académica esteja bastante equilibrada e mais dominada por mulheres. No entanto, algumas colegas admitem terem sentido que seria mais conveniente continuar no mundo da investigação académica, por questões relacionadas com o receio do mundo do trabalho e por sentirem que não era tão fácil penetrar no setor privado como era para os seus pares do sexo masculino.

Não obstante, apesar de existir alguma paridade nas pessoas que seguem para um doutoramento, existe ainda a evidência de que quanto mais alto subirmos na hierarquia da investigação académica esta tendência inverte-se, uma vez que professores e líderes académicos são, na sua grande maioria, homens.

UNRIC: Na tua opinião, quais os preconceitos existentes relativos às mulheres que as impedem de singrar certas áreas científicas e/ou sequer tentarem seguir carreira?

IH: Além das pessoas associarem áreas científicas aos homens, no geral, existe uma perceção negativa sobre as mulheres que estão em posições tipicamente “masculinas”. Diversos estudos têm demonstrado que existe a opinião de que as mulheres são menos competentes, a não ser quando são claramente bem-sucedidas no seu trabalho. Permitindo aos homens serem bem-sucedidos sem terem de constantemente justificar o seu valor no local de trabalho.

Adicionalmente, quando uma mulher é claramente competente é logo considerada uma pessoa que é mais difícil de se gostar e mais ameaçadora. Lembro-me perfeitamente de estar no primeiro ano de faculdade e de ouvir que certos cursos tinham as mulheres mais amáveis e simpáticas, enquanto a engenharia tinha apenas mulheres convencionalmente pouco atraentes. Este tipo de pensamento desincentiva ainda mais uma jovem a seguir esta via, contribuindo para a disparidade. Disparidade essa que muitas vezes está associada à clássica ideia de que os homens “naturalmente” se destacam mais nas áreas matematicamente exigentes.

UNRIC: Por fim, tens alguns conselhos, enquanto jovem profissional numa área científica, que gostarias de partilhar com outras raparigas e mulheres que anseiam por também ter uma carreira de sucesso nestas áreas?

IH: Começar primeiro por dizer que a ciência está do nosso lado, não existe nenhuma excelência natural que faça um género ser superior ao outro, existe sim dedicação e trabalho árduo e isso todas nós podemos fazê-lo. Depois, falar que o mais importante é a mudança do nosso próprio pensamento e dos nossos próprios preconceitos. Dei nesta entrevista alguns exemplos de coisas pequenas que nos dizem, às vezes disfarçadas como “piadas”, mas que têm por base um preconceito que eu própria cheguei a acreditar que era verdadeiro. Por esse motivo, acho que todas as jovens se devem rodear por um ambiente de aprendizagem que cultive o interesse e capacidade em áreas científicas. Eu tive a sorte de ter importantes figuras na minha vida que me incentivaram a seguir este caminho, mas sei que nem sempre temos a sorte de ter pessoas que nos incentivem da mesma forma. Para isso, tenho apenas de aconselhar a seguir criadores de conteúdo nas redes sociais (sempre com uma mente crítica) e a lerem o máximo que possam sobre os feitos que diversas mulheres tiverem em múltiplas áreas das ciências, porque, de facto, são imensos e, no entanto, sabemos de tão poucos.

*STEM é o acrónimo para Science, Technology, Engineering & Mathematics (ciência, tecnologia, engenharia e matemática, em português).


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