Entrevista ao Major-General Raul Luís Cunha

“Um dos melhores momentos de uma carreira militar passam por poder servir como Capacete Azul”

Nome: Raul Luís Cunha
Carreira: Major-General do Exército, juiz militar
Outras funções: Conselheiro Militar do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU no Kosovo (2005-2009)
Formação: Mestrado em Ciências Militares pela Academia Militar. Doutorando em História e Estudos de Segurança e Defesa no ISCTE-IUL
Línguas: português, inglês, francês, italiano, espanhol e um pouco de croata
Naturalidade: Maputo, Moçambique

 

No âmbito da comemoração dos 70 anos da criação dos Capacetes Azuis, que se assinala a 29 de maio de 2018, o Major-General Raul Luís Cunha partilha com a ONU Portugal a sua experiência enquanto Capacete Azul na Missão da ONU no Kosovo e sobre a importância das missões de paz.  Raul Luís Cunha foi Conselheiro Militar do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para o Kosovo, liderando cerca de 50 observadores de 26 nacionalidades diferentes entre 2005 e 2009. Atualmente reformado, o Major-General, que foi também juiz militar, dedica-se agora a um doutoramento em História e Estudos de Segurança e Defesa no ISCTE, em Lisboa. Em 2009, publicou um artigo na Revista Militar, intitulado “A Situação no Kosovo e as suas perspetivas.”


1. Comemoram-se este ano 70 anos desde a criação dos Capacetes Azuis, as forças de manutenção de paz da ONU. Como vê a atuação deste instrumento nos últimos anos?

“As forças de manutenção de paz têm sido fundamentais para a preservação da paz e de segurança em áreas problemáticas.”

Têm sido igualmente essenciais para conseguir garantir a estabilização dessas regiões e melhorar as condições de vida das populações locais.

2. Enquanto Conselheiro Militar do Representante Especial do Secretário-Geral da ONU no Kosovo, quais eram as suas principais responsabilidades e que tipo de competências ganhou?

Neste período, eu fui o elo de ligação entre a força militar, que era da OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte, ou NATO) e a parte civil da missão, responsabilidade da UNMIK (a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo) que compreende a administração central, a parte ligada à justiça e a polícia – que agora está sob a alçada da União Europeia, mas que na altura era responsabilidade das Nações Unidas. Assim, os oficiais de ligação militares que eu chefiava faziam a ponte entre a força militar e as restantes instituições. A sua atuação era fundamental para manter o Representante Especial informado sobre todas as eventuais situações problemáticas.

Raul Cunha, então conselheiro especial do secretário-geral da ONU no Kosovo, na companhia de três capacetes azuis, à conversa com um padre ortodoxo sérvio.

3. E, neste período, quais foram as experiências que mais o marcaram?

Fundamentalmente, foi a importância que teve a presença das Nações Unidas. De certa maneira, custou-me quando a situação evoluiu como evoluiu sem ter em conta na íntegra a resolução 1244 do Conselho de Segurança, o que acabou por iniciar uma situação que, ainda hoje, continua indefinida em algumas áreas do território.

“No entanto, continuo a considerar que a presença das Nações Unidas foi fundamental para a estabilização naquela região.”

4. Como é trabalhar no terreno num ambiente de pós-conflito?

Naquele contexto, contava com a presença da NATO cujo trabalho passava por manter o mínimo de segurança. Em relação ao trabalho das Nações Unidas, este foi fundamental para reerguer todas as instituições, para pôr a funcionar a administração central e para garantir que a força policial – que foi formada localmente – tinha condições para trabalhar, e que tinha sido bem aconselhada e treinada. Por outro lado, no que toca aos oficiais de ligação militares, foi sempre possível manter o Representante Especial a par de todas as situações menos satisfatórias e prevenir a ocorrência de alguns distúrbios.

5. Que impacto sentiu na vida dos civis no Kosovo?

Isso nota-se posteriormente, agora. O país tornou-se independente e evoluiu de forma positiva, sem dúvida alguma. E isso deve-se à atuação das Nações Unidas no terreno.

6. O Major-General é um dos raros oficiais que possui as três qualificações especiais do exército: ranger, comando e paraquedista. Que conselho daria a todos os que nos estão a ler e que querem enveredar por uma carreira nas Forças Armadas, possivelmente servindo como Capacetes Azuis um dia?

“Considero que um dos melhores momentos de uma carreira militar passa por poder servir como Capacete Azul.”

O facto de as pessoas encararem os militares como instrumentos de guerra, faz com que oportunidades em que eles possam servir como instrumentos de paz sejam extremamente recompensantes em termos pessoais. Portanto, penso que enveredar por uma carreira militar, tendo esta perspetiva que um dia se poderá atuar como uma força que é garantia de paz, segurança e bem-estar às populações, é sempre muito positivo.

7. Quais são, na sua opinião, os grandes desafios que a ONU enfrenta no futuro próximo no que toca a missões de paz? De que forma poderá a sociedade civil, nomeadamente os cidadãos, contribuir para esses mesmos desafios?

O cidadão deve encarar a existência das Nações Unidas como a entidade que pode, na realidade, resolver os conflitos e trazer mais estabilidade ao nível global. Em termos da evolução e do impacto que as missões têm tido, não tenho dúvidas que a ONU, com a reorganização interna que sofreu a partir de 2008, começou a ter mais e melhores capacidades para atuar no terreno. Portanto, eu penso que as pessoas têm que encarar este instrumento das Nações Unidas como fundamental para manutenção da paz e da estabilidade ao nível mundial.

“Gostaria ainda de acrescentar o seguinte, em jeito de conclusão: para mim, os três anos que trabalhei para as Nações Unidas, foram um período extremamente recompensante. Continuo a considerar que a ONU é mais capaz e, se calhar, até melhor para lidar com as situações de conflito, do que inclusive algumas organizações regionais.”

É necessário continuar a articular todos os instrumentos e continuar a apostar na manutenção de paz multidimensional, em que todos os pormenores que levam ao eclodir de situações de instabilidade são resolvidos em simultâneo e em todas as vertentes. Daí a importância da multidimensionalidade das missões: social, económica e militar, entre outras, todas devem ser resolvidas em simultâneo.


Direito Internacional e Justiça

Entre as maiores conquistas das Nações Unidas está o desenvolvimento de um corpo de leis internacionais, convenções e tratados que promovem o desenvolvimento económico...