O impacto da pandemia no trabalho e o caminho para a recuperação

A diretora da OIT-Lisboa, Mafalda Troncho, fala à ONU Portugal sobre as conclusões da Organização Internacional do Trabalho (OIT) quanto ao impacto da pandemia da covid-19 na realidade global do trabalho e aponta prioridades para a recuperação sustentável

ONU Portugal: A OIT tem publicado estudos e pareceres sobre o impacto da pandemia no mercado laboral. Que ideias destacaria dentro daquilo que tem sido estudado ultimamente pela OIT?

Mafalda Troncho: A atual pandemia começou por ser uma crise de saúde pública, mas rapidamente se alastrou à economia e aos mercados de trabalho. Nesse contexto, a OIT adequou o plano de trabalho e as suas prioridades, procurando dar resposta às necessidades que se começaram a sentir. O que a OIT tem tentado fazer é partilhar muita informação, boas práticas, produzir estudos e monitorizar em diversos domínios como os sistemas de proteção social ou setores específicos, de forma a compreender bem o impacto da pandemia. Este esforço tem levado à publicação regular de relatórios, números e tendências. Aqui, gostaria de destacar um esforço de monitorização que tem permitido à OIT divulgar, com regularidade, relatórios de monitorização e recomendações de políticas.

 “Há cenários mais otimistas e cenários mais pessimistas. No entanto, todos os cenários têm uma noção comum: nenhum país recuperará desta crise isoladamente, sem um esforço global”

Como principal conclusão, sabemos que esta crise é a crise mais severa que o mundo atravessa desde a grande depressão (1930). O impacto é claramente muito superior ao que vivemos na crise global financeira de 2009. Mais concretamente, o último relatório de monitorização da OIT diz-nos que, face ao último trimestre de 2019, se perdeu um total de 8,8% do número global de horas de trabalho em 2020. Isto equivale ao trabalho de cerca de 255 milhões de pessoas a tempo completo. Outro dado preocupante é: metade desta perda de horas de trabalho resulta da perda de empregos – o que ilustra uma situação sem precedentes. Outro dado a sublinhar: a grande maioria do emprego que se perdeu está a traduzir-se em inatividade. Por outras palavras, são pessoas a sair do mercado de trabalho, ou porque as restrições não lhe permitem fazer uma procura, ou porque simplesmente desistiram de procurar. Esta constatação vai ter implicações nas políticas a seguir e nós sabemos, pela experiência de crises anteriores, que é muito mais difícil reativar os inativos do que reempregar os desempregados. Esta é uma situação que os países têm de olhar com especial cuidado.

Depois, temos outros dados importantes quando se definem as políticas para a recuperação da crise. Os grupos mais atingidos pela pandemia estão a ser os jovens e os mais velhos – e isto não é novo relativamente às crises anteriores. Estes grupos correm maior risco de inatividade e essa questão é muito preocupante. Ao mesmo tempo, os dados mostram-nos que as mulheres trabalhadoras estão a ser desproporcionalmente afetadas face aos homens trabalhadores. Isto pode significar um retrocesso face aos progressos que vinham sendo alcançados na igualdade de género. A crise afeta mais as mulheres porque elas estão sobrerrepresentadas em setores económicos muito afetados pela crise – como o alojamento, a restauração, o comércio, a indústria transformadora -, mas também porque são predominantes nos setores do trabalho doméstico, dos cuidados, da assistência social. As mulheres correm maior risco de perder o posto de trabalho e o rendimento, mas também de serem infetadas, por estarem na “linha da frente”.

“Esta constatação vai ter implicações nas políticas a seguir e nós sabemos, pela experiencia de crises anteriores, que é muito mais difícil reativar os inativos do que reempregar os desempregados. Esta é uma situação que os países têm de olhar com especial cuidado”

Outro grupo que nos merece especial atenção são os trabalhadores migrantes. Nos países para onde imigram, vão frequentemente ocupar áreas que estão a ser muito afetadas pela covid-19: saúde, cuidados a terceiros, distribuição, transportes, agricultura ou construção. Também sabemos que, muitas vezes, estes trabalhadores não têm acesso (ou têm acesso muito limitado) à saúde e que, em situações de crise, são normalmente os primeiros a sofrer com perda de trabalho e rendimento. Aqui, é de sublinhar o exemplo dado por Portugal no início desta crise, destacado pela OIT e por outras entidades internacionais, na adoção de disposições que permitiram tratar os migrantes como residentes permanentes, de modo a que tivessem acesso aos serviços públicos, incluindo ao Serviço Nacional de Saúde. Esta é, não apenas uma questão de justiça para com os migrantes, mas também uma questão de saúde pública.

Para a OIT, é de referir também o seguinte: quanto maior é o estímulo orçamental assegurado por um país, menores são as perdas em termos de horas de trabalho. O problema é que os países não têm a mesma margem orçamental para estimular as suas economias – o que está a fazer agravar as desigualdades entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Nesse sentido, o apelo do secretário-geral da ONU António Guterres, e também das agências especializadas como a OIT, à mobilização do sistema multilateral para apoiar as economias mais frágeis é importante, para que ninguém fique para trás. A enorme desigualdade na distribuição geográfica das vacinas expõe esta necessidade de mobilização se, de facto, não quisermos deixar ninguém para trás.

Por último, destacaria a importância dos sistemas de proteção social em contexto de crises. Já tinha sido constatado na última crise (que surgiu em 2008), mas voltamos a perceber que os países com sistemas de proteção social mais sólidos e abrangentes estão em melhor situação para combater e, provavelmente, recuperar desta crise. O nosso diretor-geral sublinhou que a presente crise expôs as lacunas devastadoras na cobertura de proteção social nos países em desenvolvimento, onde a economia informal é dominante e, portanto, não há alternativas à perda de rendimento – mas, também, nos países desenvolvidos. Esta crise vem-nos mostrar que a falta de proteção social não afeta só as pessoas mais pobres. Nas economias desenvolvidas, há pessoas que até estavam a passar relativamente bem, mas que, em pouco tempo, com o acréscimo das despesas médicas ou a perda de rendimento, rapidamente viram décadas de trabalho familiar e poupanças a esgotarem-se. A OIT apela à extensão da proteção social para mitigar os efeitos desta crise, mas também para preparar uma recuperação mais duradoura.

OP: A pandemia vem mudar para sempre o modo como trabalhamos. Como é que a OIT vê o futuro das relações de trabalho, agora que o teletrabalho e o trabalho remoto vão estar tão mais presentes nas nossas vidas?

 MT: Com a pandemia, verificou-se uma massificação do teletrabalho – que deixou de ser uma realidade residual em muitos países. Parte deste movimento será temporário e outro será definitivo. Não creio que teremos os mesmos níveis de teletrabalho depois da pandemia, mas também não teremos uma realidade tão residual como tínhamos até aqui. O teletrabalho introduz alterações claras nas relações laborais e na forma como nos organizamos para trabalhar. Traz oportunidades, mas também traz muitos desafios e levanta muitas questões, como a segurança e saúde do trabalho, a interpenetração entre a vida profissional e a vida familiar, ou o “direito à desconexão”. Se, para alguns, o teletrabalho é um fator de conciliação, para outros é um fator de disrupção. As realidades (da vida profissional e familiar) interpenetram-se. Todas estas questões deverão ser debatidas e estudadas, de modo a garantirmos que, mesmo trabalhando a partir de casa, continuaremos a ter condições de acesso a um trabalho mínimo e com direitos.

OP: Em 2021, a OIT assinala o Ano Internacional da Eliminação do Trabalho infantil. O que está a ser preparado pela OIT e os seus parceiros no âmbito deste Ano Internacional?

MT: Para a OIT, o facto de a Assembleia Geral da ONU ter declarado este ano como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil constitui uma oportunidade única para que a comunidade global enfrente os desafios do trabalho infantil, mas também os novos desafios que a pandemia veio colocar neste tema. Sublinho o esforço que a OIT fez, com a UNICEF, por ocasião do Dia Mundial para a Eliminação do Trabalho Infantil, a 12 de junho, com o lançamento de um relatório conjunto sobre o impacto da covid-19 no trabalho infantil, no sentido de perceber o que fazer para evitar que a pandemia constitua um retrocesso face aos progressos significativos que se vinham registando.

Destacaria ainda o esforço do Secretariado Executivo da CPLP, com a UNICEF Portugal, a OIT-Lisboa e o Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para traduzir este relatório, permitindo a sua disseminação no mundo de língua portuguesa.

A OIT pretende dinamizar este ano Internacional, em colaboração com a Global Alliance 8.7, encorajando os principais intervenientes regionais, nacionais e organizacionais a identificarem iniciativas legislativas e práticas que pretendam tomar para pôr fim ao trabalho infantil, até dezembro de 2021. Isto vai permitir, ainda, preparar o terreno para a 5ª Conferência Global sobre o trabalho infantil que vai ter lugar na África do Sul, em 2022.

Finalmente, a OIT continuará a apoiar os seus Estados-membros a aplicar as convenções fundamentais da OIT, como a C138 sobre a idade mínima de acesso ao emprego e a C182, relativa à Interdição das Piores Formas de trabalho Infantil. As Convenções fundamentais da OIT têm uma particularidade: independentemente de terem sido, ou não, retificadas pelos Estados-membros, estes têm de fazer prova dos seus esforços de aplicação ao nível nacional. Este aspeto é muito importante e a OIT prosseguirá com esse esforço. O facto de se ter alcançado ratificação universal da Convenção 182, num tempo relativamente curto, traduz bem o compromisso que os constituintes tripartidos da OIT – governos, organizações representativas de trabalhadores e empregadores – têm feito relativamente a esta matéria. Há aqui uma nota de esperança.

 

OP: De que forma Portugal tem aplicado estas Convenções? Como tem sido o trabalho desenvolvido pela OIT Lisboa com o Governo português e outros parceiros?

 MT: A OIT-Lisboa tem vindo a trabalhar esta temática com o Secretariado Executivo da CPLP e com os pontos focais nomeados por cada país da CPLP. Temos trabalhado conjuntamente, não apenas em termos de cooperação técnica, mas também através de ações de formação e campanhas que desenvolvemos por altura do 12 de junho. Mais recentemente, temos estado a trabalhar num plano de ação com o objetivo de reforçar o compromisso dos Estados-membros da CPLP no combate ao trabalho infantil.

O grande apoio do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social de Portugal tem-nos permitido traduzir os diversos documentos e manuais de formação, de referência nesta área, em língua portuguesa. Portugal é um importante parceiro neste combate e a sua abordagem à problemática do trabalho infantil, no final da década de 90 início dos anos 2000, mereceu reconhecimento pela comunidade internacional como uma boa prática. Recorde-se que por essa altura surgiu uma queixa no Conselho da Europa contra Portugal. Na altura, muitas vozes internacionais denunciavam os números do trabalho infantil em Portugal e o país decidiu abordar a questão de uma forma muito séria, muito clara, levando a cabo um conjunto de inquéritos nacionais que permitiram desdramatizar os números que eram avançados, mas também desenhar um projeto de combate ao trabalho infantil. Esse projeto foi um sucesso e esta boa prática tem sido disseminada a nível internacional, contribuindo para o trabalho traçado pelos países da CPLP. É, também, por isso, que encontramos, sem surpresa, um foco nos direitos das crianças na agenda da presidência portuguesa da União Europeia. Esta prioridade é ainda apoiada pela centralidade que a presidência está a dar ao modelo social da União Europeia, assente o Pilar Social Europeu, e pelos os esforços desenvolvidos para a adoção de uma garantia europeia para a infância.

OP: De que forma a OIT, nomeadamente a OIT Lisboa, está a colaborar com a Presidência portuguesa do Conselho Europeu?

MT: A União Europeia e a OIT são organizações fundadas com valores muito semelhantes e é, também, justo reconhecer que a UE tem apoiado fortemente a agenda do trabalho digno. Esta cooperação, formalizada em 1958 por via de um acordo de cooperação, tem vindo a evoluir, conhecendo um reforço muito significativo nas últimas décadas. Aqui, destaco o Pilar Europeu dos Direitos Sociais que aprofunda esta convergência de princípios, de valores e prioridades. A OIT e a UE são parceiros importantes também no campo da investigação e posso referir que, neste momento, está a avançar um grande projeto conjunto sobre o trabalho nos setores automóvel e têxtil. Portugal será um dos países incluídos neste estudo.

Neste quadro, é fácil perceber que as presidências do Conselho da União Europeia acabam por constituir um momento importante de diálogo e cooperação entre as duas organizações. Esse acompanhamento é realizado a vários níveis, quer pela nossa sede, quer pelos departamentos técnicos, quer pelo nosso escritório em Bruxelas – que acompanha a Representação Portuguesa junto da eu – quer pelos Escritórios da OIT que eventualmente existam nos países que assumem a Presidência.

No âmbito desta cooperação, a OIT é convidada a participar nas reuniões informais dos Ministros do Emprego e Assuntos Sociais. Isso acontecerá também durante a Presidência portuguesa, já no próximo dia 22. A OIT participou ainda no processo de consulta, lançado pela Comissão Europeia, relativo ao plano de ação para a implementação do Pilar Social. A Presidência Portuguesa está ainda a organizar um conjunto de iniciativas muito relevantes nas nossas áreas de mandato. Como exemplos, dou a conferência de alto nível sobre o futuro do trabalho sob tema «trabalho remoto: desafios, riscos e oportunidades», que terá lugar a 9 de março e a Cimeira Social a ter lugar no Porto, a 7 de maio. A OIT foi convidada a participar em ambas, estando confirmada a participação do nosso Director-Geral, Guy Ryder.

OP: Que mensagem gostaria de destacar no contexto da recuperação da pandemia que agora começa?

MT: Esta mensagem tem sido sublinhada, tanto pelo secretário-geral da ONU, como pelo diretor-geral da OIT: há vários cenários em cima da mesa quanto aos ritmos de recuperação. Há cenários mais otimistas e cenários mais pessimistas. No entanto, todos os cenários têm uma noção comum: nenhum país recuperará desta crise isoladamente, sem um esforço global. Para a OIT, uma recuperação efetiva e sustentável terá de ser uma recuperação centrada nas pessoas. Será impossível recuperar sem políticas macroeconómicas que incluam estímulos orçamentais à economia, sem apoio a rendimentos e sem sistemas de proteção social fortes e abrangentes. As políticas definidas terão de ter atenção aos grupos mais vulneráveis, de forma a prevenirmos o crescimento das desigualdades. Terão de estar desenhadas para os setores mais atingidos e assentar num forte diálogo social, manifestando solidariedade para com os países mais frágeis e menos desenvolvidos, sob pena de não conseguirmos fazer uma recuperação a nível global.


Direito Internacional e Justiça

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