Universidade da ONU em Portugal: Investigação direcionada para a ação

A Universidade das Nações Unidas foi criada em 1972, por resolução da Assembleia das Nações Unidas, tendo iniciado a sua operação em 1975. Com sede em Tóquio, conta com vários institutos especializados em vários pontos do planeta. Um deles situa-se em Guimarães e dedica-se à investigação na área da governação digital.

Em entrevista à ONU Portugal, a diretora da UNU-EGOV explica o trabalho desta instituição, dá-nos a conhecer o âmbito de alguns dos projetos que a sua equipa tem entre mãos e esclarece como a investigação tem sido determinante para apoiar as decisões políticas.

ONU Portugal: Quando foi criada a Universidade das Nações Unidas (UNU) e em que é que consiste o seu trabalho?

Delfina Soares: Vamos começar por um ponto que é essencial, de facto as pessoas não só não conhecem bem o que faz a Universidade das Nações Unidas, como, em muitos casos, também não conhecem a existência desta instituição.

A UNU existe desde 1975, embora a sua criação tenha sido aprovada em dezembro de 1972 pela Assembleia Geral. A ideia para a criação da Universidade iniciou-se em 1969 com o então secretário-geral U Thant, que, confrontado com a complexidade dos problemas que a ONU enfrenta, sentiu necessidade de ter aquilo a que ele designou de “Ciência para a Política”. Isto é, precisava de algo que todo o sistema e os próprios Estados-membros (EM) pudessem usar para sustentar as políticas que têm de definir.

Desde então, a UNU tem vindo a desenvolver a sua atividade e tem vindo a crescer, sempre com o intuito de criar conhecimento e colaborar, quer com as entidades do próprio sistema, quer com os EM, de modo a auxiliar na resolução daqueles que são os complexos problemas que o sistema tem de abordar.

A Universidade por si é muito peculiar por três motivos. O primeiro é que tem uma existência completamente descentralizada: a reitoria fica em Tóquio, no Japão, e temos um conjunto de 14 institutos que estão distribuídos pelo mundo. Existem seis na Europa, dois na América do Norte, um na América do Sul, um no continente africano e três no continente asiático. Cada um deles conduzindo investigação e fazendo atividades de consultoria e assessoria numa determinada área especifica, no nosso caso na área da Governação Digital. Temos, também, institutos que trabalham na área da Saúde Global, Desenvolvimento Económico, Cooperação Regional, Ambiente, Água, entre outros.

Em segundo lugar, uma outra particularidade desta Universidade é o facto de, apesar de ser Universidade, praticamente não ter alunos nem cursos. Existem apenas dois cursos, um de mestrado e outro de doutoramento, que são integralmente oferecidos pela UNU, em particular pelo Instituto localizado em Tóquio, e temos também a colaboração em quatro outros programas – dois mestrados e dois doutoramentos oferecidos conjuntamente com as Universidades que acolhem esses nossos institutos.

Uma terceira peculiaridade é a nossa forma de financiamento. Nós não recebemos qualquer financiamento do orçamento da ONU. Todo o financiamento tem por base contribuições voluntárias dos países que aceitam e se propõem a acolher os institutos e a própria Universidade como um todo.

Portanto, quando em 1972 foi decidida a criação da Universidade, o Japão antecipou-se e manifestou interesse em acolher a reitoria. É por isso que efetivamente nós estamos lá sediados. Na altura, o governo do Japão fez um endowment de 100 milhões de dólares para acolher a Universidade e a reitoria em particular. A partir daí, foram-se criando os Institutos. Foi assim que sucedeu também com a UNU-EGOV.

Quando a Universidade percebe que há uma área temática que ainda constitui uma lacuna e que é preciso explorar e para a qual é importante desenvolver conhecimento, isso é debatido, estuda-se a viabilidade ou não da criação de um novo instituto para essa área e depois, a partir do momento em que há convicção da necessidade de criação de um novo instituto, os países são informados e auscultados. Nesta parte, é feito um trabalho mais político e estratégico de manifestações de interesse em relação ao acolhimento do futuro instituto.

ONU Portugal: Como foi criada a UNU-EGOV, situada em Guimarães?

DS: No caso português, aconteceu da mesma maneira. Quando houve vontade e foi tomada a decisão de criar um instituto na área da Governação Digital, vários países se propuseram. Portugal foi um deles, e no processo negocial acabou por colher a preferência e ser escolhido como país para acolher esta Unidade. Em particular, a cidade de Guimarães onde a Unidade existe desde 2014.

Na sequência, foi assinado um acordo com a República Portuguesa para nos acolher, que tem implícito uma contribuição voluntária que o país faz e que é utilizada para garantir as nossas operações. Desde então, temos vindo a desenvolver a nossa atividade muito focada nas questões da utilização estratégica das tecnologias de informação para suportar os governos e a transformação dos processos de governação.

ONU PORTUGAL: Como é que a governação eletrónica pode ajudar os decisores políticos? Qual é a contribuição da UNU-EGOV neste âmbito?

DS: O trabalho que desenvolvemos é de quatro naturezas distintas.

Um dos nossos principais pilares de atuação é a investigação. Investigação realizada em áreas relevantes que fazem parte daquilo que nós designamos como o nosso “core research programe”, e que incluem áreas tão diversas como a prestação de serviços públicos digitais aos cidadãos, a transformação digital das instituições públicas, a interoperabilidade dos sistemas e integração de serviços públicos, a participação e envolvimento cívico (participação eletrónica ou e-participation), a inclusão digital, a literacia digital no setor público, a medição e monitorização do governo eletrónico, a utilização de tecnologias emergentes no setor público, as cidades e a governação inteligente, etc. Isto é, equipas de investigação fazem trabalho de campo e investigam sobre uma determinada questão.

Um outro pilar de atuação são as atividades de consultoria e assessoria que efetuamos diretamente com as agências governamentais dos países e, às vezes, com outras organizações internacionais, nomeadamente, agências irmãs do sistema das Nações Unidas, bem como outras ONGs que trabalham em áreas afins e que se cruzam com a governação digital.

Um terceiro pilar envolve atividades a designamos de capacitação, de criação de conhecimento, e desenvolvimento de capacidades. Estou a referir-me concretamente a atividades de formação executiva dirigida a funcionários públicos ao mais alto nível, a dirigentes políticos, a formuladores de políticas públicas.

Uma quarta componente é algo que está nos nossos estatutos e em que apostamos muito: a criação e promoção de redes entre entidades que trabalham nesta área da Academia, de entidades governamentais que trabalham e lideram estas áreas de desenvolvimento e Governação Digital e com outros organismos internacionais.

As temáticas que nós trabalhamos são efetivamente essas, tudo o que tem que ver com a forma como as tecnologias de informação podem ser utilizadas para alterar os mecanismos de governação dos países. Trabalhamos com agências governamentais, a administração pública, governos e sociedades. Em todas estas esferas podemos fazer uso das tecnologias para aumentar, por exemplo, a eficiência do funcionamento das próprias instituições públicas, melhorar a forma como elas prestam os serviços aos cidadãos, aumentar os níveis de envolvimento e participação cívica, quer no próprio redesenho e melhoria serviços públicos, quer nas tomadas de decisão, na definição de políticas públicas, etc.

ONU Portugal: Pode dar algum exemplo concreto de projetos que tenham feito ou estão a fazer presentemente?

DS: Há um conjunto de projetos, quatro para ser mais concreta, que estamos a desenvolver neste momento e que saliento desde já, todos eles focados no apoio aos países na definição daquilo que são as suas estratégias de Governação Digital.

Estamos a fazer isso com São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Geórgia e a Guiné-Bissau. Tratam-se de projetos de uma relevância extrema e de grande impacto. Estamos a falar da definição da forma como, nos próximos anos, os países desenvolverão toda a área da Governação digital. Quais as ações que devem ser prioritárias e quais não devem. São projetos que irão ter uma implicação direta e brutal, não só nas instituições públicas, mas indiretamente na economia e todo o desenvolvimento do país.

Uma outra área onde temos várias colaborações e vários projetos a decorrer está relacionada com a monitorização e a medição da forma como o governo digital se tem vindo a desenvolver. A este nível temos projetos concretos: estamos a colaborar com o Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas (DESA) que a cada dois anos publica um estudo de referência mundial com o ranking dos países que mostra o nível de desenvolvimento da governação digital. Trabalhamos com a DESA no aperfeiçoamento da metodologia usada na elaboração desse ranking, mas também, e sobretudo, na definição de uma metodologia similar para ser aplicado na avaliação do governo eletrónico a nível local (cidades/municípios). Trabalhamos, também, em projetos nessa área com os países da zona oeste dos Balcãs onde estamos a auxiliá-los na forma como eles podem utilizar o Digital Economy and Society Index, DESI, que a Comissão Europeia usa para avaliar o nível de desenvolvimento digital dos países. Apoiamos, também, a Arábia Saudita a monitorizar e a medir a forma como estão a evoluir nos seus esforços de desenvolvimento de governação digital e a dar-lhes orientações de como podem melhorar e qual o caminho a seguir.

Como vê, a nossa investigação não se fecha em si mesma, acontece sempre com o intuito de produzir instrumentos, recomendações e orientações que auxiliem os decisores a definirem as suas políticas.

Um outro projeto muito interessante que estamos a desenvolver, e que posso também destacar, explora uma ideia não muito estudada pelos investigadores e que tem a ver com a forma como as necessidades das crianças e jovens são consideradas (ou não) quando se desenvolvem esforços de transformação digital dos serviços públicos. Elas (as crianças) são uma parte importante da sociedade e, geralmente, não são considerados quando se faz uma reflexão de como se devem prestar serviços online; nunca se pensa nos jovens. Neste âmbito, estamos a trabalhar num projeto que está a ter muita recetividade com a UNICEF.

Temos trabalhado também, mais recentemente, em projetos muito focados na inclusão digital. Projetos que visam produzir orientações para aumentar a promover a oferta de serviços online inclusivos e também a definição de métricas que nos ajudem a avaliar até que ponto este processo de transformação digital é inclusivo.

E depois temos uma série de projetos na área das tecnologias emergentes e, em particular, do blockchain. Temos um projeto, por exemplo, que estuda a possibilidade de utilização do blockchain na prestação de serviços no Uzbequistão. Outro exemplo é o estudo que estamos a conduzir sobre a possibilidade da aplicação do blockchain e como é que isso se articula com a questão do Regulamento Geral da Proteção de Dados, RGPD. Este é um estudo que estamos a realizar com a Agência Nacional de Proteção de Dados de Espanha e também a utilização das tecnologias emergentes na área das smarts cities. Esta última é outra das áreas em que temos investigadores a trabalhar e projetos a decorrer.

ONU Portugal: Quem nos lê, quem nos vê, quem gostaria de fazer parte da UNU, professores, investigadores, funcionários públicos, como é que o podem fazer?

DS: Estamos presentes nos canais de comunicação típicos. Temos o nosso website onde encontram muita informação; temos uma newsletter que podem subscrever e que vão recebendo com informação atualizada regularmente; temos a nossa presença nas redes sociais, Facebook e LinkedIn, e estamos sempre disponíveis, quer por contatos diretos de email, quer por contatos pessoais e visitas às nossas instalações para quem residir próximo de nós ou quem estiver a visitar a cidade de Guimarães e queira visitar-.

A nossa disponibilidade é um fator que nos caracteriza: estamos sempre disponíveis para partilhar e conversar com as pessoas!

ONU Portugal: Como é que um funcionário público ou investigador universitário pode criar uma relação convosco?

DS: Temos um programa para acolhermos “Government Fellows” que são funcionários públicos de instituições governamentais de todo o mundo. Desde que iniciámos este projeto nunca tivemos ninguém de Portugal, mas já tivemos de 19 países diferentes. É um programa muito interessante que consiste em acolher alguém que vem e está connosco fisicamente, geralmente durante 3 meses. Enquanto estão connosco, refletimos com eles sobre o problema, o desafio, que têm em mãos no seu país, nas suas instituições, e ajudámo-los a encontrar uma solução, uma resposta. Essas pessoas são totalmente integradas na nossa instituição, participam em todas nossas reuniões, nas nossas reflexões e nos nossos debates. É uma integração total. Tudo o que é assunto que nós discutimos, seja mais sensível ou menos, mais organizacional ou mais científico, elas estão presentes.

Este trabalho tem tido consequências excelentes. Vou dar um exemplo de um caso muito concreto; recebemos um desses bolseiros do Egito, que esteve connosco durante três meses. Um profissional interessante em termos de perfil, porque é juiz, um background diferente dos que habitualmente temos, mas que trabalhava nas questões da transformação digital. Foi uma experiência muito boa. Através das suas apresentações e partilhas ficamos a conhecer melhor quer o país e o seu contexto, quer os esforços de governação digital que lá estão a ser desenvolvidos. Para além disso, posso dizer que, em janeiro deste ano, assinamos com o Egito um MoU e um contrato que prevê a vinda de 75 pessoas – três grupos de 25 pessoas – funcionários de instituições governamentais do país, para a nossa unidade para terem formação intensiva na área.

Já tivemos outros programas deste tipo. Por exemplo, em 2017 recebemos  um grupo de 30 pessoas dos diversos países dos PALOP e de Timor-Leste que estiveram connosco um mês a fazer uma formação intensiva, extremamente intensiva, mas muito compensadora e do qual resultaram colaborações que temos, neste momento, com Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

Alguns números sobre a UNU-EGOV em 2020:

Equipa:

  • 24 pessoas, entre eles 10 investigadores a tempo inteiro.

Colaboração/interação:

Produção:

  • 14 projetos de consultoria
  • 12 projetos de investigação
  • 23 propostas de projeto para financiamento submetidas
  • 58 documentos publicados
  • 40 eventos em que desempenhou papel ativo
  • 15 dissertações de mestrado e 15 teses de doutoramento supervisionadas

 

 

 


Direito Internacional e Justiça

Entre as maiores conquistas das Nações Unidas está o desenvolvimento de um corpo de leis internacionais, convenções e tratados que promovem o desenvolvimento económico...