“A defesa dos direitos humanos requer um trabalho constante”, diz Alto-comissário Zeid Ra’ad Al Hussein

Zeid Ra’ad Al Hussein tem uma longa história associada com as Nações Unidas.Tudo começou com o seu serviço enquanto soldado da paz na Operação da ONU na Antiga Jugoslávia /UNPROFOR) entre 1994 e 1996. Desse ano até 2007, e depois de 2010 a 2014, Zeid foi representante permanente da Jordânia na ONU. Durante o segundo mandato enquanto representante permanente presidiu ao Conselho de Segurança: comités 1533 e 152,  relativamente ao regime de sanções na República Democrática do Congo e da Libéria, respetivamente.

Este diplomata veterano da ONU também desempenhou um papel central na criação do Tribunal Penal Internacional, presidindo a negociações complexas relativas a tópicos tais como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.O seu conhecimento sobre operações de manutenção de paz é extenso. Em 2004, na sequência de relatos de abusos generalizados por parte das forças de manutenção da paz da ONU, foi nomeado Conselheiro Especial do Secretário-Geral para a Exploração Sexual e Abusos. O seu relatório produzido em 2005 criou, pela primeira vez, uma estratégia abrangente para a eliminação da exploração sexual e abusos nas operações de manutenção da paz da ONU, sendo considerado “revolucionário” por vários peritos. Em 2012, Zeid Al-Hussein foi escolhido pelo Secretário-Geral, Ban Ki-moo, como um dos seus cinco peritos para trabalhar no “Grupo de Altos Conselheiros” relativamente aos reembolsos a países que contribuíram para as tropas de manutenção da paz

Deixou o mundo da diplomacia há cerca de 15 meses, quando assumiu o cargo de Alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, a 1 de setembro de 2014. É o sétimo Alto-comissário do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e o primeiro asiático, muçulmano e árabe a fazê-lo.

O Alto-comissário esteve à conversa com o Centro de Notícias da ONU sobre os desafios não só relativos aos direitos humanos, mas também à sua carreira de Alto-comissário após anos a trabalhar na diplomacia multilateral.


Centro de Notícias da ONU: Quais são os principais desafios para os direitos humanos em 2016?

Alto-comissário Zeid: O crescimento do extremismo violento e do pensamento extremista afetou bastante a forma como os governos abordam os direitos humanos e, particularmente, temos visto governos a pressionarem a sociedade civil enquanto estratégia para travar posicionamentos extremistas. No entanto, do nosso ponto de vista, isso é totalmente contraproducente porque medidas repressivas produzem mais posicionamentos extremistas. O desafio principal, o dilema  que enfrentamos atualmente em termos de direitos humanos, é o aumento do posicionamentos extremistas mas certas políticas de governos – a não ser que tenham por base uma agenda de direitos humanos – apenas reforçam a narrativa das ideologias extremistas e a sociedade civil é apanhada no meio. Sente-se essa pressão um pouco por todo o lado.

Centro de Notícias da ONU: Porque é que a “agenda dos direitos humanos” não está a obter o apoio de que necessita?

Alto-comissário Zeid:  Penso que, em parte, se explica pelo facto da sociedade civil ter provado ao longo dos anos ser uma força que merece reconhecimento, mas atualmente existe um retrocesso nesse aspeto, que também é devido ao extremismo violento. A agenda dos direitos humanos provou tem um grande poder na mobilização da opinião pública e os governos estão a tentar lidar com isso. Vivemos um momento muito crítico e delicado.

Centro de Notícias da ONU: O que é que é necessário para ultrapassar esse “momento”?

Alto-comissário Zeid: É preciso um apoio contínuo na defesa dos direitos humanos, é algo que requer um trabalho constante. No momento em que deixamos de apoiar a agenda dos direitos humanos, assistimos ao seu retrocesso em várias partes do mundo. É necessário dialogar constantemente com os governos, mas também ir para além desse esforço. Um dos desafios principais é que os governos ainda têm dificuldade em aceitar críticas de fontes externas, fontes da ONU. Isto cria tensões domésticas, mas penso que é necessário chamar a atenção para as violações  de direitos humanos onde elas ocorrem, porque em várias partes do mundo assistimos a um retrocesso na forma como os direitos humanos devem ser defendidos.

Centro de Notícias da ONU: O tema dos direitos humanos esteve presente na conferência sobre alterações climáticas, em Paris (COP21), em dezembro passado. Qual é a ligação entre alterações climáticas e direitos humanos?

Alto-comissário Zeid: Gostaria de referir que no texto final da COP2 foi incluído, no preâmbulo, uma referência aos direitos humanos. Isto é importante porque reflete a importância que a comunidade internacional dá aos direitos humanos neste contexto. Se as alterações climáticas não forem combatidas, vamos assistir  a uma privação de direitos humanos em muitos aspetos. No caso de várias ilhas, será a privação do direito à vida, noutros será a privação do direito à saúde ou do direito à educação… e tudo isto são consequências de alterações climáticas não controladas.

Centro de Notícias da ONU: Face ao destaque que é dado aos aspetos humanitários da atual crise de refugiados, estarão os direitos humanos a ser negligenciados?

Alto-comissário Zeid: Os refugiados têm direito à proteção sob a Convenção de 1951. Mas memso que uma pessoa não seja refugiada, também tem direitos humanos. É isto que queremos que os governos reconheçam. Demasiadas vezes é cometido o erro de que negar o acesso a aconselhamento, a reparações individuais, etc, aos que não são refugiados. Teemos de garantir que isso não aconteça. Também estamos a assistir a o outro fenómeno, que é o aumento da xenofobia. Vemos isso na Europa, incluindo a islamofobia, com incitações por parte de líderes políticos, ou com uma linguagem muito próxima de incitações nesse aspeto. Tudo isto é uma grande preocupação para a comunidade dos direitos humanos.

FOTO ONU

Centro de Notícias da ONU: Falemos um pouco da experiência pessoal, recordando que quando tinha 30 anos era soldado da paz, envolvido no conflito nos Balcãs, nos anos 1990.  Porque é que escolheu esse caminho e de que forma influenciou a sua carreira?

Alto-comissário Zeid: Foi há tanto tempo que nem me consigo lembrar da razão da minha candidatura. No entanto, foi um ponto de partida para aquilo que seria o meu papel na criação do Tribunal Penal Internacional. Fui para Nova Iorque em 1996, sendo que as negociações do esboço do Estatuto de Roma tinham começado em 1995. Após ter presenciado os horrores, a catástrofe da guerra, senti que tinha de me envolver na criação do tribunal. Havia uma ligação direta clara.

Centro de Notícias da ONU: Há 15 meses que tem o cargo de Alto-comissário. Correspondeu às suas expectativas?

Alto-comissário Zeid: É muito mais difícil do que eu pensava. Sabia que iria ser difícil, mas é um trabalho muito duro, porque é necessário envolver-se constantemente em confrontos. No mundo diplomático,  há negociações, há alguma etiqueta envolvida. No mundo dos direitos humanos, particularmente do lado do Alto-comissário, tem de haver abordagens diretas que criam tensões às quais não estava habituado no passado. Por vezes a atmosfera fica  tensa com muitas das autoridades com que lidamos. É diferente.

Centro de Notícias da ONU: Como é que lidou com essa mudança, com a passagem de um trabalho mais diplomático para um nível onde tem de falar de forma bastante direta e franca. Foi difícil?

Alto-comissário Zeid: É uma mundaça complicada porque sabia que teria que falar de forma mais determinada. Não contava receber reações tão fortes, mas faz parte do trabalho e aprende-se a lidar com isso. Mas foi uma surpresa. Quando  aceitei o cargo citei uma frase da minha mulher, que disse que “iria perder rapidamente muito amigos”, e acho que talvez seja verdade! Especialmente no caso dos amigos que tinha feito nos governos. Também notei isso na sessão de abertura da Assembleia-geral da ONU. Ao passar pelo salão, via velhos amigos a revirarem os olhos, não querendo encararm-e e mudando de lugar. É natural. Eu faria o mesmo se fosse representante permanente de um país que foi criticado pelo Alto-comissário e tivesse de o enfrentar diretamente num corredor. É diferente!

Centro de Notícias da ONU: Então pode dizer-se que este cargo requer algum estofo…

Alto- comissário Zeid: É exatamente isso.

Centro de Notícias da ONU: Enquanto mais alto funcionário da ONU para os direitos humanos aborda o assunto constantemente, muitas vezes para um público menos recetivo. Qual é o peso que este cargo exerce em si?

Alto-comissário Zeid: Quando oiço as vítimas das violações de direitos humanos não é fácil. Emocionalmente falando, é bastante difícil. Em muitos casos, sinto que não posso fazer muito. Posso falar, mas que poderei fazer por alguém que perdeu o filho, ou que foi torturado de uma forma tão cruel, olhandopara mim como tendo uma solução para todos os seus problemas? Às vezes sinto que não soua pessoa  indicada para o trabalho que tenho em mãos. Este não é um trabalho qualquer, é um trabalho com bastante impacto emocional para quem defende os direitos humanos. A questão não se coloca tanto nas salas de reuniões, mas mais quando se visita famílias de pessoas desparecidas ou torturadas. É bastante duro. Vou admitir aqui clarameente que, às vezes, penso como é possível que alguém continue a fazer isto, porque é necessário ter estofo.

Centro de Notícias da ONU: Talvez seja demasiado cedo para perguntar, mas quando terminar o seu mandato de Alto-comissário, o que é que espera ter alcançado?

Alto-comissário Zeid: Tem razão, é demasiado cedo para fazer esta pergunta. Não me irei pronunciar sobre isso agora! Temos uma agenda de reformas para realizar e espero que o consigamos fazer. Resolvemos uma coisa de cada vez, e existem tantas batalhas neste momento que não posso dizer quais gostaria de vencer. Fazemos esta entrevista daqui a dois anos.

3 de fevereiro de 2016, Centro de Notícias da ONU/Traduzido & Editado por UNRIC


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