Relatório UNFPA – Entrevista a Mónica Ferro

O Fundo das Nações unidas para a População (UNFPA) apresentou hoje, na Assembleia da República, o Relatório sobre situação da população mundial 2023 “8 mil milhões de vidas, INFINITAS POSSIBILIDADES: assegurando direitos e escolhas”. 

A diretora do Escritório para Europa do UNFPA, Mónica Ferro, teve a seu cargo a apresentação deste relatório, que faz uma análise dos desafios e das oportunidades para a humanidade, num mundo que conta já com 8 mil milhões de pessoas. 

A diretora do UNFPA falou com a ONU Portugal e explicou quais as preocupações identificadas neste relatório, apontando ainda uma série de soluções para garantir um mundo mais justo, igualitário e respeitador dos direitos humanos.  

O Relatório do UNFPA sobre a situação da população mundial 2023 apela a uma mudança de paradigma em relação à forma como se criam e implementam as políticas demográficas, nomeadamente como os números da população são entendidos e utilizados. 

 

UNRIC Este relatório apresenta algumas preocupações. Eu começava por lhe perguntar que preocupações são essas. 

MF Bom dia António. Muito obrigada pelo convite e por nos ajudar num dos objetivos fundamentais deste relatório, que é não só disseminar os dados que apresentamos, mas também lançar uma conversa séria, profunda, e até de uma certa forma reenquadradora, da forma como temos discutido os números humanos. O nosso relatório, que tem este título verdadeiramente inspirador “8 mil milhões de vidas”, com a mensagem de possibilidade infinitas, é mesmo o que nós queremos que esteja na cabeça das pessoas que nos estão a ouvir e que vão pensar sobre isto – que estamos a falar de um mundo com possibilidades infinitas, desde que promovamos direitos e escolhas. Portanto, o título do relatório já tem a sua principal mensagem. 

Nós temos noção de que quando afirmamos que a família humana hoje é maior do que nunca, somos 8 mil milhões de pessoas, que isto é uma razão para celebrar, pois vivemos globalmente com mais saúde e mais qualidade do que nunca. Tudo isto se deve aos avanços na ciência, aos avanços na medicina, as mulheres morrem cada vez menos de gravidez e de parto, as crianças vivem cada vez mais, atingem a idade adulta, vão à escola, portanto, é um mundo cheio de oportunidades. Porém, é um mundo também cheio de desafios: no momento em que estamos a celebrar as 8 mil milhões de vidas no planeta, temos também noção de que as ameaças climáticas, as crises económicas, o conflito, tudo isto gera uma sensação de grande ansiedade e de grande alarmismo junto de algumas pessoas. Aliás, é mencionado no relatório um estudo feito em países onde as pessoas estavam expostas a títulos verdadeiramente catastróficos sobre este momento demográfico específico em que estamos, onde se confirma a existência de uma grande ansiedade e no qual a maior parte das pessoas respondia dizendo que há demasiadas pessoas no planeta.  

Assim, sentimos que este era também um momento importante para falar sobre todas essas preocupações e desmontar alguns dos mitos que fomos identificando. Esses mitos são esta ideia de que ou somos demasiados, e essa é uma das preocupações que lançamos no relatório, tentamos desmontar essa ideia de que somos demasiados, ou a ideia de que podemos ser muito poucos, que também desmontamos. Outra grande ideia que tentamos desconstruir é a de que há uma espécie de um gold standard, um número ideal para a população, e que devemos todos almejar o 2,1 como taxa de substituição das gerações. Uma outra ideia que trabalhamos muito é sobre o papel dos Estados, o que podem e devem fazer para criar um mundo de oportunidades para todos.  

Se me permitir uma palavra sobre cada um deles:  

esta ideia de que nós somos demasiados no planeta – a verdade é que a maior parte de nós, a maior parte da população mundial cerca de 2/3, vive numa zona em que já está abaixo de 2.1 (a tal chamada taxa de substituição); verdade é também que a esperança média de vida aumentou quase uma década desde os anos 90, portanto, vivemos em média 72.8 anos – e isto é uma razão para celebrar.  

Além disso, ao longo dos próximos 25 anos, a população vai continuar a crescer, 2/3 da população irá continuar a aumentar muito graças àquilo a que nós chamamos uma certa inércia populacional, ou seja, um movimento que está em construção e, portanto, a tentativa de implementar algum tipo de engenharia sobre as taxas de fertilidade será ineficaz não vai produzir resultados.  

Também chamamos a atenção para outro facto: menos de 10% da população mundial é responsável por todas as emissões de gases com efeito de estufa. Por isso, tentar misturar o aumento das emissões poluentes com o aumento da população é incorreto, não é verdade. Com isto, nós queremos mostrar que, de facto, não somos demasiados. O problema nunca é um número; os números das pessoas nunca foram o problema. O problema são sempre as respostas que os Estados têm adotado ao longo da história para esta análise que fazem da situação.  

© UNFPA Democratic Republic of the Congo/Lisa Thanner

Assim como a ideia de que podemos ser menos daquilo que seria necessário ter para sustentar as nossas sociedades a verdade é que apenas uma região no mundo irá ver a sua população a decrescer entre 2022 2050, e essa é a Europa. Muitos países estão a ver a sua população decrescer desde a década de 70, e estão abaixo do nível de substituição. Contudo, esse nível tem sido preenchido pelos migrantes, o que faz com que surja uma série de ideias pré-concebidas de que estas serão razões para alarme.  

Não é razão para alarme. O que nós temos de fazer é mudar a narrativa e fazer as perguntas corretas sobre o que é que se pode fazer. Para nós o problema nunca é o número de pessoas; para nós a questão é fazer as perguntas corretas, olhar para os dados e perceber que qualquer política tem que ser baseada nos direitos e trazer igualdade de género como uma espécie do elo que nos faltava, de forma a perceber como é que estas políticas demográficas podem ser verdadeiramente eficazes. 

UNRIC – E o relatório aborda precisamente isso, apresenta soluções concretas e recomendações aos Estados. Que recomendações são essas, que soluções são essas que o relatório identifica? 

MF – Um dos pedidos fundamentais que fazemos neste relatório é aos Estados, para que, primeiro, olhem para a história e vejam que estas políticas de fertilidade, que são desenhadas para aumentar ou baixar as taxas de fertilidade, são, na maior parte das vezes, ineficazes e prejudicam os direitos humanos, sobretudo os direitos das mulheres. Muitos países têm tentado levar a cabo programas para influenciar o número e o tamanho das famílias, oferecendo incentivos financeiros, recompensas às mulheres e aos seus parceiros e, mesmo assim, continuam a ter taxas de nascimento abaixo dos 2 filhos por mulher. Os esforços para abrandar o crescimento da população através de esterilizações forçadas ou contraceção coerciva têm violado, de forma muito grosseira, os direitos humanos – e é preciso ter noção disto, porque o planeamento familiar não pode ser usado como uma ferramenta para atingir objetivos, ou marcos de fertilidade; o planeamento familiar tem que ser visto como um instrumento para empoderar indivíduos.  

O nosso relatório parte muito desta afirmação, sendo que a diretora-executiva do UNFPA, Natália Canon, disse no lançamento do relatório que “a reprodução humana nunca é o problema, nem a solução”. Só quando pusermos a igualdade de género e os direitos no centro das políticas populacionais é que vamos ser mais fortes, mais resilientes e capazes de lidar com as alterações que resultam de dinâmicas populacionais rápidas.  

A nossa recomendação para os governos e para os parceiros envolvidos nesta questão, é olhar para os números humanos de uma forma diferente. Afastarmo-nos de objetivos demográficos e movermo-nos em direção àquilo que chamamos a resiliência demográfica, e esta é a grande recomendação. Construir resiliência demográfica, que é a capacidade de se adaptar às flutuações do crescimento populacional e das taxas de fertilidade – que sempre tiveram lugar ao longo da história e vão continuar a ocorrer, é uma inevitabilidade – o que implica investir na recolha de dados, mas uma recolha que olhe para além dos números e das taxas de fertilidade, implica fazer as perguntas certas.  

© UNFPA Philippines

Nós até nos atrevemos, na página 132 do relatório, a apresentar uma espécie de toolkit para a resiliência demográfica, onde dizemos uma coisa muito simples: usem os dados populacionais para planear o desenvolvimento. São os dados mais fiáveis a que um Estado pode ter acesso, porque são dados medidos ao longo de períodos longos. Usem-nos, compreendam de que forma as tendências demográficas vão impactar a economia, e vão gerar necessidade para novas políticas porque as políticas têm de estar ao serviço das pessoas e não modelar o número de pessoas para servir as políticas. Perguntarem-se como os direitos humanos podem estar no centro destas políticas e evitar estas engenharias demográficas que, na maior parte das vezes, violam os direitos humanos, e apoiar as preferências de fertilidade e as aspirações das pessoas. Nós dizemos uma coisa muito simples: em vez de nos perguntarmos ‘quanto é que as pessoas/população estão a crescer/diminuir?’, perguntem aos indivíduos ‘qual é que é a vossa aspiração de fertilidade?’, e ponham em funcionamento um sistema que permita apoiar essas aspirações. Mais uma vez, centrado em direitos humanos e com a igualdade de género no centro. 

UNRIC – Até porque as realidades são muito díspares, consoante as geografias, consoante os estados sociais, enfim, podem variar muito, por isso, a ação e as medidas devem-se adaptar à realidade local. 

MF – Soluções únicas, exatamente. Nós notamos, por exemplo, ao longo do relatório há vários exemplos disso, como as perceções e o modelo único, ou de uma ideia única, têm violado os direitos de comunidades específicas, porque nos esquecemos de perguntar às pessoas o que é que elas querem. Na verdade, isto é o que vai permitir construir sociedades prósperas e resilientes. Se tivermos uma sociedade em que a taxa de envelhecimento é notória mais uma vez os dados demográficos são longos e, portanto, permitem-nos fazer esta avaliação o que nós precisamos de fazer é olhar para as várias políticas que temos à nossa disposição e investir nas que têm igualdade de género no centro e os direitos humanos. Ou seja, não é mandando dinheiro para casa para se ter mais filhos, que é uma das respostas imediatas, que nós vamos construir uma sociedade mais inclusiva, mais resiliente. A igualdade de género vai permitir, por exemplo, que existam mais mulheres a entrar no mercado de trabalho, compensando alguma necessidade, nesse sentido. As políticas migratórias podem ajudar a compensar também estas faltas temporárias de mão de obra no mercado de trabalho. Porque ter mais crianças não resolve, nem a curto, nem a médio prazo, nenhum destes problemas. E o mesmo no sentido de negar a determinados indivíduos o direito a atingirem a sua fertilidade desejada. Portanto, tem mesmo que ser uma política baseada em dados e que façam as perguntas certas. Só assim vamos conseguir desenhar uma sociedade mais inclusiva, com oportunidades para todos. 

UNRIC – E ir ao encontro daquelas que são as grandes metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável previstos na Agenda 2030. Mónica Ferro muitíssimo obrigado pelo seu tempo, a sua disponibilidade e até breve. 

MF – Muito obrigada.  


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