O Conflito Silencioso no Coração de África

Localizada no coração de África e sem acesso ao mar, o isolamento da República Centro-Africana (RCA) transformaram-na num dos conflitos mais ignorados deste século. Fustigada por décadas de autoritarismo e instabilidade política, a RCA vive hoje um período de violência sectária entre grupos muçulmanos e milícias cristãs. A violência indiscriminada dos rebeldes já obrigou 603 mil pessoas a abandonar o país, enquanto que os 79% dos habitantes que ficaram vivem na pobreza. Para por fim ao terror, o Presidente firmou um amplo acordo de paz, no entanto, a violência continua. A intervenção das Nações Unidas e o sucesso das eleições de 2020 são agora uma esperança renovada para a RCA.

O Sonho da Democratização

A República Centro-Africana (RCA) alcançou a independência de França em 1960 mas a autonomia conquistada não significou uma maior democratização do país.

Foram precisas três décadas de regimes autoritários, líderes cruéis e instabilidade social para se realizarem eleições democráticas.

Apesar da expansão do voto e dos apelos à democratização, a instabilidade política permaneceu uma constante. Em 2003, o Presidente em exercício foi derrubado por um líder rebelde e entre 2004 e 2007, o país passou por uma guerra civil que viria a ser o embrião do conflito de hoje.

As tensões escalaram progressivamente ao longo dos anos e explodiram com violência no final de 2012, quando a recém-formada aliança de grupos rebeldes Seleka acusou o governo de não cumprir os acordos de paz estabelecidos no pós-guerra civil. Em apenas 4 meses, os Seleka passaram a controlar o norte do país e depuseram o Presidente François Bozizé, em março de 2013. Com o golpe de Estado, o país afastava-se do caminho da reconciliação nacional e precipitava-se para mais um conflito e para “o colapso total da lei e da ordem” (Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas de outubro de 2013).

Mulher obrigada a fugir por causa do conflito na República Centro-Africana
Uma mulher é obrigada a sair de sua casa após uma onda de violência ter assolado a cidade de Bambari. Hoje, a ACNUR estima que haja já mais de 580 mil deslocados internos no país. ACNUR / F. Noy

A Tensão Religiosa e a Divisão do Território

O golpe de Estado operado pelos Seleka colocou no poder o seu líder, Michel Djotodia, que prometeu convocar eleições presidenciais e trazer a paz de volta à RCA. Como sinal desse compromisso, Djotodia dissolveu formalmente a aliança Seleka. No entanto, deixados cada um à sua vontade e sem um líder que encabeçasse o movimento, os vários grupos rebeldes começaram a atuar sozinhos. Sem objetivos definidos, os ex-membros Seleka, maioritariamente muçulmanos, instauraram um período de violência indiscriminada contra comunidades inteiras.

A resposta não se fez esperar e uma nova coligação emergiu. Os anti-balaka, uma aliança de combatentes cristãos, surgiu, atuando da mesma forma que os Seleka – pilhando e atacando indistintamente qualquer pessoa ou comunidade muçulmana.

O surgimento deste novo grupo e os ataques religiosos agora desferidos alastraram a onda de violência a todo o país. A infraestrutura estatal rapidamente se deteriorou e o governo perdeu controlo de 70% do território do país. Fora da capital, o poder passou a pertencer ao grupo rebelde mais forte. No norte, onde a minoria muçulmana se estabeleceu sob a proteção dos Seleka, declarou-se até autonomia do resto do país, em dezembro de 2015.

A Crise Humanitária e a Resposta da ONU          

Face à escalada de violência e ao número crescente de refugiados, vários países vizinhos foram tomando medidas para conter a violência na RCA. Em dezembro de 2013, a União Africana, com o apoio de vários países, incluindo França e Portugal, e do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), lidera a MISCA – Missão Internacional de Apoio à República Centro-Africana. O objetivo desta missão seria estabilizar o país após o golpe de Estado de março de 2013 e a violência subsequente.

Contudo, face ao escalar das tensões, o CSNU reforçou a sua posição e estabeleceu, a 10 de abril de 2014, a MINUSCA – Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a República Centro-Africana. A MINUSCA substituiu os 6.000 operacionais da MISCA em setembro de 2014 e conta agora com 14.749 pessoas presentes no terreno, entre militares, civis, polícias e voluntários.

Polícia da MINUSCA alerta os estudantes para os perigos do conflito
Gladys Nkeh, uma mulher polícia da ONU, visita uma escola em Bangui para procurar e prestar auxílio a uma rapariga que tinha sido violada recentemente. ONU / Eskinder Debebe

A sua principal prioridade é a proteção de civis em risco. Segundo dados do Gabinete do Alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (UNOCHA), há 2.9 milhões de pessoas a precisar de ajuda humanitária e 79% da população vive abaixo do limiar da pobreza.

Fugir ao Conflito

Após anos de violência, muitas famílias viram-se obrigadas a fugir do seu país. Atualmente, para além dos 581 mil deslocados internamente, o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)  estima que 603 mil pessoas se refugiaram em países vizinhos. Quase metade destas pessoas fugiu para os Camarões (48,6%), enquanto a República Democrática do Congo (28,7%), o Chade (17,2%), a República do Congo (3,7%) e o Sudão (1,5%) acolheram a outra metade.

Mulher refugia-se em igreja em Boali para fugir ao conflito
Adama, de 40 anos, refugia-se na Igreja de São Pedro, em Boali, para fugir ao conflito na cidade. “É difícil viver aqui. Temos dormido nos bancos da igreja”. Um mês depois desta foto ter sido tirada, Adama conseguiu fugir para os Camarões. ACNUR / A. Greco

O ACNUR tem acompanhado a situação e está presente tanto na RCA, como nos países vizinhos. Apesar da falta de financiamento, naquela que descrevem como “uma das situações de emergência globais mais escassamente financiadas”, o seu trabalho passa por prestar cuidados básicos de saúde, distribuir itens e kits básicos de sobrevivência e construir novos abrigos para refugiados.

Insegurança Alimentar

As más condições de vida e o colapso financeiro de 2013, em que o PIB caiu 36%, atuaram como catalisadores para a queda na produção agrícola e o poder de compra da população. Hoje, 65% a 75% do rendimento disponível de uma família é gasto em alimentação. Apesar destes números, para a maioria das famílias a realidade é mais cruel. Hoje, 2.1 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar, sendo que 85% dessas pessoas sofre de insegurança alimentar extrema.

A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em parceria com o Programa Alimentar Mundial (PAM), está presente na RCA e presta auxílio alimentar a 920 mil pessoas.

O PMA presta especial atenção a grávidas e crianças com menos de cinco anos. Para esta faixa etária, esta agência da ONU fornece alimentação nutritiva reforçada a 36 mil crianças. Além disso, desenvolve também programas de recapacitação das infraestruturas e atividades agrícolas para que o país possa superar esta crise alimentar. Em 2018, 46 mil agricultores, dos quais 60% mulheres, foram ajudados por programas de apoio a pequenos produtores.

As Crianças e a Guerra

As crianças são um dos grupos mais afetadas pelo conflito. Atualmente, 1.5 milhões de crianças necessitam de ajuda humanitária e 4 em cada 10 crianças com menos de 5 anos sofre de malnutrição crónica. A instabilidade e a violência separaram comunidades e famílias e hoje, 3 em cada 5 crianças vive com famílias de acolhimento, a grande maioria extremamente pobres.

Criança é analisada por um médico na República Centro-Africana
Em Bangui, um médico analisa o estado de saúde de uma criança. A banda amarela no medidor indica que a menina está em risco de sofrer malnutrição. UNICEF / Roger LeMoyne

A UNICEF está no terreno a dar resposta a esta catástrofe humanitária, ajudando a vacinar metade da população do país, a formar professores e a criar escolas. Contudo, a violência indiscriminada continua a ser uma grande barreira ao seu trabalho. A UNICEF relata que, “na maioria das vezes, os grupos armados atacam civis em vez de se atacaraem mutuamente. Eles atacam funcionários e instalações de saúde e educação, mesquitas e igrejas, bem como sítios onde as pessoas deslocadas procuram abrigo.”

Esta violência é uma ameaça não apenas para a vida das crianças, mas para o futuro do país, onde apenas 6% dos adolescentes terminou o ensino secundário.

A Incerteza do Futuro

A esperança para a República Centro-Africana reside agora no acordo de paz firmado em fevereiro de 2019, no qual o Presidente Faustin-Archange Touadera conseguiu reunir os 14 maiores grupos rebeldes e estabelecer pontos para o fim da violência e o restabelecer da paz. Este acordo, que é o oitavo a ser realizado desde 2012, traz esperança para um dos países menos desenvolvidos do mundo (a RCA figura em penúltimo lugar na lista de 189 países avaliados pelo Índice de Desenvolvimento Humano).

Apesar deste passo significativo e da convocação de eleições para 2020, as tensões parecem ter aumentado entre as diferentes milícias, que continuam a praticar atos de violência indiscriminada. Para que este acordo não falhe e a região alcance finalmente a paz, é agora necessário que as partes acabem com a violência e assumam uma postura de respeito e diálogo construtivo com vista a um futuro com paz e sem violência.

Fontes:

https://peacekeeping.un.org/en/mission/minusca

https://minusca.unmissions.org/en/about

https://data.worldbank.org/country/central-african-republic?view=chart

https://data2.unhcr.org/en/situations/car

ONU News